sábado, 16 de março de 2013

Pedra filosofal - António Gedeão

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso,
em serenos sobressaltos
como estes pinheiros altos
que em verde e ouro se agitam
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma. é fermento,
bichinho alacre e sedento.
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel.
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
para-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra som televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.


Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre a mãos de uma criança.

Apelo - Daniel Filipe

Pedido de socorro (onde estou eu?)
lançado ao mar numa garrafa escura.
À minha beira fica a sepultura;
dentro repousa o corpo que foi meu.

Aves de agoiro, a vida como é dura!
Tão pouco azul e derradeiro céu!
O vento norte alastra o claro véu
e esconde aos olhos a nudez impura.

Ah! sol de Junho!, ao menos és real.
teus finos dedos, alongados, tersos,
retratam-me em tamanho natural.

Outros sinais de mim ficam dispersos
Por sobre a água funda e o areal.

No bojo da garrafa vão só versos.

 Daniel Filipe, "O viageiro solitário"