(eu sabia de cor toda a geografia)
O Senhor Inspector
deu-me a nota mais alta em
geografia
e disse gravemente:
- "Continua. Hás-de ser
gente..." -
"Ângulo recto, agudo,
cateto, hipotenusa..."
(Já manchara de giz a minha
blusa
mas respondia a tudo
e a Professora sorria
enquanto eu papagueava a
Geometria)
- "...D.Sancho, o Povoador...
D.Dinis, o Lavrador...
(Tinha então boa memória,
sabia as datas da história...)
1380
1640
1143
em Arcos de Valdevez...
(Muito bem, a pequena é
simpática).
- "Vamos lá à gramática." -
"...E, nem, não só, mas
também...
conjunções copulativas"
(Eu pensava na alegria
que ia dar a minha mãe,
nas frases admirativas
da velha D.Maria,
a minha primeira mestra:
- Tão novinha e ficou
"bem"!" -
e esta suavíssima orquestra
acompanhava, em surdina,
o meu primeiro exame de menina
aplicada, orgulhosa e
inteligente...)
- "Vá ao quadro, menina! Docilmente
fiz os problemas, dividi
fracções,
disse as regras das quatro
operações
e finalmente
O Senhor Inspector felicitou-me,
quis saber o meu nome
e declarou-me
que ficara "distinta"
sem favor.
Ah! que esplendor!
Que alegria total e sem mistura,
que orgulho, que vaidade!
Olhei de frente o sol e a
claridade
não me cegou.
As estrelas, fitei-as como
iguais.
Melhor: como rivais,
e a Humanidade
pareceu-me um rebanho sem
vontade,
uma vasta colónia de formigas...
(As minhas pobres, tímidas
amigas!)
Pouco depois, em casa,
a testa em fogo, o olhar em brasa,
gritei num desafio
à Terra, ao Céu, ao Mar, ao Rio:
- "O mãe, eu já sei
tudo!"
No seu olhar tranquilo, de
veludo,
no seu olhar profundo,
que era todo o meu mundo,
passou uma ironia tão velada,
uma ironia
tão funda, tão calada,
que ainda hoje murmuro, cada
dia:
"- Ó mãe, eu não sei
nada!"
Fernanda de Castro, "Trinta e nove poemas" (1941)
Genial. Obrigada.
ResponderEliminar