quarta-feira, 1 de maio de 2013

Reminiscência - Fernanda de Castro "O mãe, eu não sei nada!..."

"...Lisboa, Santarém, Porto, Leiria..."
(eu sabia de cor toda a geografia)
 O Senhor Inspector
 deu-me a nota mais alta em geografia
 e disse gravemente:
 - "Continua. Hás-de ser gente..." -

"Ângulo recto, agudo,
 cateto, hipotenusa..."
 (Já manchara de giz a minha blusa
 mas respondia a tudo
 e a Professora sorria
 enquanto eu papagueava a Geometria)

- "...D.Sancho, o Povoador...
 D.Dinis, o Lavrador...
 (Tinha então boa memória,
 sabia as datas da história...)
 1380
 1640
 1143
 em Arcos de Valdevez...
 (Muito bem, a pequena é simpática).

- "Vamos lá à gramática." -
 "...E, nem, não só, mas também...
 conjunções copulativas"
 (Eu pensava na alegria
 que ia dar a minha mãe,
 nas frases admirativas
 da velha D.Maria,
 a minha primeira mestra:
 - Tão novinha e ficou "bem"!" -
 e esta suavíssima orquestra
 acompanhava, em surdina,
 o meu primeiro exame de menina
 aplicada, orgulhosa e inteligente...)

- "Vá ao quadro, menina! Docilmente
 fiz os problemas, dividi fracções,
 disse as regras das quatro operações
 e finalmente
 O Senhor Inspector felicitou-me,
 quis saber o meu nome
 e declarou-me
 que ficara "distinta" sem favor.

Ah! que esplendor!
Que alegria total e sem mistura,
que orgulho, que vaidade!
Olhei de frente o sol e a claridade
não me cegou.
As estrelas, fitei-as como iguais.
Melhor: como rivais,
e  a Humanidade
pareceu-me um rebanho sem vontade,
uma vasta colónia de formigas...
(As minhas pobres, tímidas amigas!)

Pouco depois, em casa,
a testa em fogo, o olhar em brasa,
gritei num desafio
à Terra, ao Céu, ao Mar, ao Rio:
- "O mãe, eu já sei tudo!"
No seu olhar tranquilo, de veludo,
no seu olhar profundo,
que era todo o meu mundo,
passou uma ironia tão velada,
uma ironia
tão funda, tão calada,
que ainda hoje murmuro, cada dia:
"- Ó mãe, eu não sei nada!"

Fernanda de Castro, "Trinta e nove poemas" (1941)

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