segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Hoje - Ana Redondo

Eu quero ser uma janela aberta p'ro mundo,
Ou um balão que flutua no ar.
Quero dizer olá a todos com quem cruzo.
Quero sentir o aroma da relva molhada
E ver a beleza do jasmim.
Quero ser iluminada
 P'lo brilho do luar 
E o cintilar das estrelas
Como um trilião de velas  a arder.
Quero apreciar o sabor da maçã
E a textura do figo.
Quero em cada momento saber espalhar sorrisos
E que à minha volta todos fiquem mais felizes
Quero isto tudo e muito mais ainda.
Quero viver. 
Quero sonhar.

Ana Redondo, Janeiro de 2015

Travessuras - Oswaldo Montenegro


sábado, 24 de janeiro de 2015

História antiga - Miguel Torga

 Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
 Feio bicho, de resto:
 Uma cara de burro sem cabresto
 E duas grandes tranças.
 A gente olhava, reparava, e via
 Que naquela figura não havia
 Olhos de quem gosta de crianças.

 E, na verdade, assim acontecia.
 Porque um dia,
 O malvado,
 Só por ter o poder de quem é rei
 Por não ter coração,
 Sem mais nem menos,
 Mandou matar quantos eram pequenos
 Nas cidades e aldeias da Nação.

 Mas,
 Por acaso ou milagre, aconteceu
 Que, num burrinho pela areia fora,
 Fugiu
 Daquelas mãos de sangue um pequenito
 Que o vivo sol da vida acarinhou;
 E bastou
 Esse palmo de sonho
 Para encher este mundo de alegria;
 Para crescer, ser Deus;
 E meter no inferno o tal das tranças,
 Só porque ele não gostava de crianças.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Para além da curva da estrada - Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

 Para além da curva da estrada
 Talvez haja um poço, e talvez um castelo, 
 E talvez apenas a continuação da estrada.
 Não sei nem pergunto.
 Enquanto vou na estrada antes da curva
 Só olho para a estrada antes da curva,
 Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
 De nada me serviria estar olhando para outro lado
 E para aquilo que não vejo.
 Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
 Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
 Se há alguém para além da curva da estrada,
 Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
 Essa é que é a estrada para eles.
 Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
 Por ora só sabemos que lá não estamos.
 Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
 Há a estrada sem curva nenhuma.


in “Poemas Inconjuntos”. Poemas Completos de Alberto Caeiro (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) [Lisboa: Presença,1994.]

No teu poema - Ary dos Santos

 No teu poema
 Existe um verso em branco e sem medida
 Um corpo que respira, um céu aberto
 Janela debruçada para a vida
 No teu poema
 Existe a dor calada lá no fundo
 O passo da coragem em casa escura
 E, aberta, uma varanda para o mundo.
 Existe a noite
 O riso e a voz refeita à luz do dia
 A festa da senhora da agonia
 E o cansaço
 Do corpo que adormece em cama fria.
 Existe um rio
 A sina de quem nasce fraco ou forte
 O risco, a raiva e a luta de quem cai
 Ou que resiste
 Que vence ou adormece antes da morte.
 No teu poema
 Existe o grito e o eco da metralha
 A dor que sei de cor mas não recito
 E os sonhos inquietos de quem falha.
 No teu poema
 Existe um cantochão alentejano
 A rua e o pregão de uma varina
 E um barco assoprado a todo o pano
 Existe a noite
 O canto em vozes juntas, vozes certas
 Canção de uma só letra e um só destino a embarcar
 O cais da nova nau das descobertas.
 Existe um rio
 A sina de quem nasce fraco, ou forte
 O risco, a raiva e a luta de quem cai ou que resiste
 Que vence ou adormece antes da morte.
 No teu poema
 Existe a esperança acesa atrás do muro
 Existe tudo o mais que ainda escapa
 E um verso em branco à espera do futuro.

Ary dos Santos


 (7 de Dezembro de 1937 — 18 de Janeiro de 1984)

sábado, 17 de janeiro de 2015

Guerra e religião - Ana Redondo

 Se uma criança é perseguida  e humilhada pelos colegas de escola é alvo de desrespeito e bulling. Se um grupo religioso e racial é sistematicamente alvo de troça de um jornal , criticam-se os assassinos terroristas e fala-se da irrevogável liberdade de expressão. Ninguém reconhece que o jornal atacou e ofendeu. Claro que as armas não são solução. Depois, cria-se o medo...  e cerceia-se a liberdade em nome da segurança. Mas a liberdade de desrespeitar não é questionada! E a dignidade do outro? E a aceitação da diferença? O lápis pode criar barreiras entre vizinhos. Em nome de que legitimidade? A liberdade implica responsabilidade, todos os direitos comportam deveres. Deveres de cidadania, pelo direito à dignidade e bom nome do grupo visado.
Quem semeia ventos colhe tempestades.


Ana Redondo, Janeiro de 2015