domingo, 18 de janeiro de 2015

No teu poema - Ary dos Santos

 No teu poema
 Existe um verso em branco e sem medida
 Um corpo que respira, um céu aberto
 Janela debruçada para a vida
 No teu poema
 Existe a dor calada lá no fundo
 O passo da coragem em casa escura
 E, aberta, uma varanda para o mundo.
 Existe a noite
 O riso e a voz refeita à luz do dia
 A festa da senhora da agonia
 E o cansaço
 Do corpo que adormece em cama fria.
 Existe um rio
 A sina de quem nasce fraco ou forte
 O risco, a raiva e a luta de quem cai
 Ou que resiste
 Que vence ou adormece antes da morte.
 No teu poema
 Existe o grito e o eco da metralha
 A dor que sei de cor mas não recito
 E os sonhos inquietos de quem falha.
 No teu poema
 Existe um cantochão alentejano
 A rua e o pregão de uma varina
 E um barco assoprado a todo o pano
 Existe a noite
 O canto em vozes juntas, vozes certas
 Canção de uma só letra e um só destino a embarcar
 O cais da nova nau das descobertas.
 Existe um rio
 A sina de quem nasce fraco, ou forte
 O risco, a raiva e a luta de quem cai ou que resiste
 Que vence ou adormece antes da morte.
 No teu poema
 Existe a esperança acesa atrás do muro
 Existe tudo o mais que ainda escapa
 E um verso em branco à espera do futuro.

Ary dos Santos


 (7 de Dezembro de 1937 — 18 de Janeiro de 1984)

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