Tenho quarenta janelas nas paredes do meu quarto. Sem vidros nem bambinelas posso ver através delas o mundo em que me reparto. Por uma entra a luz do Sol, por outra a luz do luar, por outra a luz das estrelas que andam no céu a rolar. Por esta entra a Via Láctea como um vapor de algodão, por aquela a luz dos homens, pela outra a escuridão. Pela maior entra o espanto, pela menor a certeza, pela da frente a beleza que inunda de canto a canto. Pela quadrada entra a esperança de quatro lados iguais, quatro arestas, quatro vértices, quatro pontos cardeais. Pela redonda entra o sonho, que as vigias são redondas, e o sonho afaga e embala à semelhança das ondas. Por além entra a tristeza, por aquela entra a saudade, e o desejo, e a humildade, e o silêncio, e a surpresa, e o amor dos homens, e o tédio, e o medo, e a melancolia, e essa fome sem remédio a que se chama poesia, e a inocência, e a bondade, e a dor própria, e a dor alheia, e a paixão que se incendeia, e a viuvez, e a piedade, e o grande pássaro branco, e o grande pássaro negro que se olham obliquamente, arrepiados de medo, todos os risos e choros, todas as fomes e sedes, tudo alonga a sua sombra nas minhas quatro paredes.
Oh janelas do meu quarto, quem vos pudesse rasgar! Com tanta janela aberta falta-me a luz e o ar.
Era a tarde mais longa de todas as tardes
Que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas
Tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca,
Tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste
Na tarde tal rosa tardia
Quando nós nos olhamos tardamos no beijo
Que a boca pedia
E na tarde ficamos unidos ardendo na luz
Que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto
Tardaste o sol amanhecia
Era tarde demais para haver outra noite,
Para haver outro dia.
(Refrão)
Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza.
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza.
Foi a noite mais bela de todas as noites
Que me aconteceram
Dos noturnos silêncios que à noite
De aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois
Corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram. Foram noites e noites que numa só noite
Nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites
Que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles
Que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto
Se amarem, vivendo morreram.
(Refrão) Eu não sei, meu amor, se o que digo
É ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo
E acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste
Dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida De mágoa e de espanto.
Meu amor, nunca é tarde nem cedo Para quem se quer tanto!
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o
rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que
corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda, Para aqueles que vêem em tudo o
que lá não está, A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em
Portugal. Toda a gente sabe isso. Mas poucos sabem qual é o rio da
minha aldeia E para onde ele vai E donde ele vem. E por isso, porque pertence a
menos gente, É mais livre e maior o rio da
minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América E a fortuna daqueles que a
encontram. Ninguém nunca pensou no que há
para além Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Alberto Caeiro (Heterónimo de Fernando Pessoa) - "O Guardador de
Rebanhos"
Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai fermosa, e não segura.
Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamelote;
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura.
Vai fermosa e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que mundo espanta
Chove nela graça tanta
que dá graça à fernosura.
Vai fermosa e não segura.
Entre tu eu há um desentendimento Só de carícias feito Um rol de silêncios sufocados Um mundo de segredos revelado Entre tu eu há um mar de palavras por dizer De gestos por fazer, de mundos por viver E há também uma corrente de palavras ditas De gestos desfeitos, de falsas verdades abaladas Entre tu eu há uma ilusão de desencanto Um sonho de encontro Um desespero de esperança Num mundo destroçado. Entre tu eu há uma inocência de adultos E uma fraqueza de crianças E há a dor dos soluços disfarçados As lágrimas por chorar A saudade por sofrer Mais uma trémula compreensão balbuciante Um véu de solidão e encobrimento. E há o instante que desperta Na eternidade fugaz Como loucura sensata Num horizonte sem paz. Porque em mim e em ti há um querer infinito no futuro E um desprezo ignóbil pelo "eu" Há vinte anos de preconceitos calcinados ... E defesas construídas E ânsias destruídas E há um abismo de medos, de recuos e tremores Um desafio de orgulho imesurado E uma pálida luz no fundo da caverna... Ana Redondo, 1981
"Ce quíl est
beau dans le desert c ést qu'il cache un puit quelque part" - Antoine de Saint Exupery
Afinal era verdade
Era mesmo "Nova Luz" O renascer foi efémero? Não. Difícil sim Mas não será em vão Escuta... Uma fonte além É preciso avançar Não fiques inerte Há uma fonte além Então valeu a pena O deserto é grande Mas a fonte espera Viver é lutar E o caminho engana Faz-nos vacilar (Vamos até pactuar) Mas o caminho é longo Não se pode hesitar Vai. Levanta-te e vai Afasta os obstáculos São meros entraves Já vês o caminho É preciso avançar.
Mesmo que a luz se extinga
Ela há-de voltar E o caminho é em frente Não se pode hesitar O destino e distante? Talvez. Importante é ir Chegar? Sim, mas em cada
instante Saber construir. Fica a alegria De estarmos a andar.
É preciso crescer
Caíste, que importa Vais-te levantar Não foi p'ra estar inertes Que aprendemos a andar. Ana Redondo, 1983
Talvez eu viva iludida Talvez me chamem romântica Talvez digam que é mentira Sentir aquilo que eu sinto Sofrer aquilo que eu sofro ...Viver aquilo que eu vivo Mas se o mundo é hipocrisia E os "amigos" nos
traem Nos preparam as ciladas Onde havemos de cair Para sair destroçados E eles ...ficam a rir Do mundo feito maldade Prefiro estar enganada (Romântica toda a vida) Mas continuar sentindo E saber o que é a dor E conhecer a saudade Que é perder um grande amor Ana Redondo, 1982
Coitado! que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço; Du~a cousa confio e desconfio. Voo sem asas; estou cego e guio; E no que valho mais menos mereço. Calo e dou vozes, falo e emudeço, Nada me contradiz, e eu aporfio. Queria, se ser pudesse, o impossível;
Queria poder mudar-me e estar quedo;
Usar de liberdade e estar cativo; Queria que visto fosse e invisível;
Queria desenredar-me e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo
Quando a dignidade humana deixa de ser o principal valor, construtor de integridade pessoal, respeito pelos outros e por si próprio também, nada mais pode assegurar que a justiça seja justa, a economia não seja dominada e manipulada pelos detentores da riqueza e a sociedade gerida por governantes, colocados no poder por lobbies financeiros e movidos pelo seu próprio egoísmo.
A razão tem de ser entretecida pelos sentimentos e emoções para tornar possível um mundo verdadeiramente solidário, compreensivo, dialogante, responsável, que valorize as diferenças pessoais e alimentando-se dessa multiplicidade possa ser construtivo e criador, dinâmico e inovador, feliz e libertador.
Os animais só matam na medida das suas necessidades de sobrevivência. O que faz o homem desejar mais do que o que pode verdadeiramente desfrutar? E de que lhe serve toda a riqueza, se não tiver pão para comer e água para beber? Como pode alguém sentir paz e harmonia se vive pisando e humilhando o outro?
Palavras, só palavras, só
palavras Palavras repensadas,
refundidas, esvaziadas Palavras perfumadas, palavras
apontadas Como setas Um zumbido de sons
perfurando-me os ouvidos Sol, chuva, amor, guerra Ciúme, ódio, adultério E se sorrir ao marido da amiga Sou sacrílegas E se beijar o jovem louro Ao luar da meia noite serei
pura E se chorar sal ensanguentado Sob o travesseiro da cama Serei eu
Palavras, só palavras, só
palavras
Quantos livros serão diariamente
impressos Quantas palavras serão dia a
dia gastas Quantas vezes Carter trairá
publicamente As suas próprias intenções
políticas E os cubanos mascarados de
imperialistas Matarão sobre as palavras
ressequidas da defesa social
Palavras lidas, palavras
relidas
E o Aaiatolá Khomeini promete
a reconstrução do Irão Sobre as cinzas de 3000 mortos E o marido infiel jura à
mulher que nunca amou mais ninguém Não, não, o resto não é amor
O eco das palavras sem sentido
a ecoar nos ouvidos
Quantas palavras serão
reinventadas em cada minuto Para justificar a confusão
universal E Cristo será a sublimação da
libido E quando todos morrermos sob a
bomba de neutrões Humanidade, dorme tranquila,
virá a sociedade ideal
Palavras frias como mármore
branco
Disfarçado em veludo ornamentado E hei-de afundar-me em
palavras Hei-de ludibriar o próprio
Freud Embotando os sentidos em
caracteres alinhados Até esgotadas as pálpebras se
baixarem Sob o som do calor do Ipanema
nos versos da Mara Abrantes E os sonhos que vierem serão
covas sem fundo Só p'ra enlouquecer Lacan
..." E quando se
descobrir o 999º nome de Deus
As estrelas cairão!"
Mas eu não estarei aqui; e o meu cérebro será
A Tipografia Universal
E hei-de fumar até os
pensamentos
Se esfumarem numa mancha de
nicotina acinzentada E hei-de trabalhar em
horizontes numéricos Sob as palavras bonitas da
recuperação económica
E se algum pensamento ainda
resistir
A este tratamento de choque
aqui prescrito - como este que hoje tentou percorrer-me - Logo o cobrirei com palavras
de tinta De sons altissonantes Em folhas de papel
Mas não, nunca permitierei
Que o pensamento tome forma e
síntese e conclusão A verdade do pensamento poderá
queimar-me
Que importa a melodia,
se acaso aos outros dou,
com pávida alegria,
o pouco que me sou?
Que importa ao que me sabe
estar só no meu caminho,
se dentro de mim cabe
a glória de ir sozinho?
Que importa a vã ternura
das horas magoadas,
se ao meu redor perdura
o eco das passadas?
Que importa a solidão
e o não saber onde ir,
se tudo, ao coração,
nos fala de partir?
Trespasse
Quem tiver sonhos, guarde-os bem fechados
— com naftalina — num baú inútil.
Por mim abdico desses vãos cuidados.
Deixai-me ser liricamente fútil!
Estou resolvido. Vou abrir falência.
(Bandeira rubra desfraldada ao vento:
"Hoje, leilão!") Liquida-se a existência
— por retirada para o esquecimento ...