quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Palavras (1979)

Palavras, só palavras, só palavras
Palavras repensadas, refundidas, esvaziadas
Palavras perfumadas, palavras apontadas
                Como setas
Um zumbido de sons perfurando-me os ouvidos
Sol, chuva, amor, guerra
Ciúme, ódio, adultério
E se sorrir ao marido da amiga
                Sou sacrílegas
E se beijar o jovem louro
Ao luar da meia noite serei pura
E se chorar sal ensanguentado
Sob o travesseiro da cama
                Serei eu

Palavras, só palavras, só palavras
Quantos livros serão diariamente impressos
Quantas palavras serão dia a dia gastas
Quantas vezes Carter trairá publicamente
As suas próprias intenções políticas
E os cubanos mascarados de imperialistas
Matarão sobre as palavras ressequidas da defesa social

Palavras lidas, palavras relidas
E o Aaiatolá Khomeini promete a reconstrução do Irão
Sobre as cinzas de 3000 mortos
E o marido infiel jura à mulher que nunca amou mais ninguém
Não, não, o resto não é amor

O eco das palavras sem sentido a ecoar nos ouvidos
Quantas palavras serão reinventadas em cada minuto
Para justificar a confusão universal
E Cristo será a sublimação da libido
E quando todos morrermos sob a bomba de neutrões
Humanidade, dorme tranquila, virá a sociedade ideal

Palavras frias como mármore branco
Disfarçado em veludo ornamentado
E hei-de afundar-me em palavras
Hei-de ludibriar o próprio Freud
Embotando os sentidos em caracteres alinhados
Até esgotadas as pálpebras se baixarem
Sob o som do calor do Ipanema nos versos da Mara Abrantes
E os sonhos que vierem serão covas sem fundo
Só p'ra enlouquecer Lacan

..." E quando se descobrir o 999º nome de Deus
As estrelas cairão!"

Mas eu não estarei aqui; e o meu cérebro será
A Tipografia Universal

E hei-de fumar até os pensamentos
Se esfumarem numa mancha de nicotina acinzentada
E hei-de trabalhar em horizontes numéricos
Sob as palavras bonitas da recuperação económica

E se algum pensamento ainda resistir
A este tratamento de choque aqui prescrito
 - como este que hoje tentou percorrer-me -
Logo o cobrirei com palavras de tinta
De sons altissonantes
Em folhas de papel

Mas não, nunca permitierei
Que o pensamento tome forma e síntese e conclusão
A verdade do pensamento poderá queimar-me

Ana Redondo, 1979



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