Não poderás encontrar nenhuma paixão se te conformas com uma vida que é inferior àquela que és capaz de viver.
domingo, 30 de junho de 2013
sábado, 29 de junho de 2013
Mendiga - Florbela Espanca
Na vida
nada tenho e nada sou;
Eu ando a mendigar pelas estradas...
No silêncio das noites estreladas
Caminho, sem saber para onde vou!
Tinha o manto do sol... quem mo roubou?!
Quem pisou minhas rosas desfolhadas?!
Quem foi que sobre as ondas revoltadas
A minha taça de oiro espedaçou?!
Veja passar o verme, rastejando...
Na solidão dos ermos matagais!...
Eu ando a mendigar pelas estradas...
No silêncio das noites estreladas
Caminho, sem saber para onde vou!
Tinha o manto do sol... quem mo roubou?!
Quem pisou minhas rosas desfolhadas?!
Quem foi que sobre as ondas revoltadas
A minha taça de oiro espedaçou?!
Agora
vou andando e mendigando,
Sem que um olhar dos mundos infinitos Veja passar o verme, rastejando...
Ah, quem me dera ser como os chacais
Uivando os brados, rouquejando os gritosNa solidão dos ermos matagais!...
Inércia (1982)
Estou farta de mentir
De enganar os outros
Com meu sorriso triste
De me enganar a mim mesma
Meu coração de pedra coberto
Farta e cansada de mentir
Queria poder gritar
"Não, mais farsa não
Agora vou viver, ser eu"
Pela vida fora
Sempre e só a enganar
Os outros e a mim
A enganar com meu semi-sorriso
A perfidez do mundo
A enganar com a crueldade do meu eu rasgado
A sucessão de emoções que, dentro de mim,
Aos borbotões perpassa
De enganar os outros
Com meu sorriso triste
De me enganar a mim mesma
Meu coração de pedra coberto
Farta e cansada de mentir
Queria poder gritar
"Não, mais farsa não
Agora vou viver, ser eu"
Mas demasiado cansada
até p'ra reagir
Quem sabe não
continuareiPela vida fora
Sempre e só a enganar
Os outros e a mim
A enganar com meu semi-sorriso
A perfidez do mundo
A enganar com a crueldade do meu eu rasgado
A sucessão de emoções que, dentro de mim,
Aos borbotões perpassa
Ana
Redondo, 1982
Vácuo (1981)
A minha vida
Nem a mim mesma conto
E fico assim tão vazia
Que qualquer dia encontro-me na rua
E nem me reconheço.
Arranco violenta a máscara
...E então me fitarei pela primeira vez
Ana Redondo, 1981
Nem a mim mesma conto
E fico assim tão vazia
Que qualquer dia encontro-me na rua
E nem me reconheço.
Depois, quando me cansar da farsa
De mentir a mim mesma vestida de ninguémArranco violenta a máscara
...E então me fitarei pela primeira vez
E enquanto momento a momento morro... (1982)
"E com isto que têm as estrelas?
Continuam
brilhando altas e belas"José Régio
Que esta que momento a momento me consome
Pedaço a pedaço me leva
E a pouco e pouco me destrói
Me seca os olhos
Me esvazia os sentidos
E me vai tornando pedra dura
... E estarei morta quando tiver esquecido
A súplica (quiçá fingida) que um dia li nos teus olhos
Ana
Redondo, 1982
Advertência (1982)
E se algum dia eu
publicar
Este lamento em forma de verso
Que saibam desde já os seus leitores ao lê-lo
Que não vale o papel em que está escrito...
E no entanto contém (incipiente e confuso)
Todo o mistério e miséria
Deste mundo que pisamos
Enquanto, humanos, vivemos
Tudo o que aqui fica dito
O disseram já pelos tempos fora
Centenas e centenas de criaturas iguais
Tudo o que aqui está escrito
Muitos antes de mim
O escreveram já, bem mais e melhor
Tudo o que aqui está escrito
O vive, a cada hora, cada ser que passa
Ana
Redondo, 1982
Este lamento em forma de verso
Que saibam desde já os seus leitores ao lê-lo
Que não vale o papel em que está escrito...
E no entanto contém (incipiente e confuso)
Todo o mistério e miséria
Deste mundo que pisamos
Enquanto, humanos, vivemos
E se algum dia o
publicar
Que fiquem desde já
sabendoTudo o que aqui fica dito
O disseram já pelos tempos fora
Centenas e centenas de criaturas iguais
Tudo o que aqui está escrito
Muitos antes de mim
O escreveram já, bem mais e melhor
Tudo o que aqui está escrito
O vive, a cada hora, cada ser que passa
sexta-feira, 28 de junho de 2013
Esforço: Tentativa e erro (2013)
Redigi as minhas crenças
E lancei-as numa seta
Com esperança que atingissem
Certeiras a meta.
Na ilusão demente
Que troassem em frente.
Para se converterem em chuva
E alimentarem os rios.
Para que as acácias, em Abril
Fossem amena sombra de petizes.
Crente que às sombrias favelas
Chegaria uma réstea de amor.
Que zumbiam em turbilhões,
Julgando que os meus lamentos
Comoveriam nações.
Para que as lavas intensas
Atingissem o teu coração.
O vulcão ficou inactivo
E a minha fúria se cansou.
Ana Redondo, Junho 2013
E lancei-as numa seta
Com esperança que atingissem
Certeiras a meta.
Cantei os meus valores
E gravei-os em tamboresQue troassem em frente.
Pousei os meus princípios
Em cima de uma nuvem Para se converterem em chuva
E alimentarem os rios.
Lancei as minhas raízes
No solo mais fértilPara que as acácias, em Abril
Fossem amena sombra de petizes.
Pintei meus sonhos em
telas
Cheias de luz e de corCrente que às sombrias favelas
Chegaria uma réstea de amor.
Que zumbiam em turbilhões,
Julgando que os meus lamentos
Comoveriam nações.
Subi com as minhas
certezas
Até ao centro do vulcãoPara que as lavas intensas
Atingissem o teu coração.
Mas a chuva amainou,
O vento abrandou,O vulcão ficou inactivo
E a minha fúria se cansou.
Ana Redondo, Junho 2013
Metamorfose (2013)
Homenagem a Jorge Luís Borges e ao seu conto “Aleph”
Fui um cume altaneiro
Com neves perpétuas
Ao céu apontando.
Fui
condutor de trenós
Na árida estepe siberiana.
E circulei em rodas e festas
Vestida de garrida cigana.
Fui um rebelde pardal
Em voo rasante
Sobre os campos de milho.
Fui honesto agricultor
Amante do seu velho asno,
Cultivando couve- portuguesa
Em minúsculo quintal.
Fui adulado e vivi só
Fui apaixonado,
Doente e olvidado.
Hoje,
ainda que de longe e velado,
Vislumbrei
o Aleph, o longe e o perto.
Sofri, fui amado e odiado.
Fui presença constante e misantropo ausente.
E percorri num camelo as dunas do deserto.
Fui o som revigorante
De límpida cascata
E o furioso vulcão
De lava transbordante,
Que avança, indómito,
E tudo destrói.
Fui intrépida fragata
Sulcando os mares sem fim
E frágil libélula
Pousando nos umbrais.
O nascente e o ocaso,
A luz cintilante e a bruma velada.
Fui as mãos pacientes e treinadas
Que ao longo do anos
Entrelaçaram fios em histórico tear
E a latejante dor daquela mãe
Que chora o filho perdido
Que não mais regressará ao lar.
Que o gelo eterno
Afinal era efémero!
Agora é mais distante o caminho até ao oceano
E bem mais duro e incerto
Encontrar alimento. O regresso demora
Até ao desprotegido bebé pinguim .
E a criança que nasceu e sempre viveu
Naquele estranho habitário
Candidamente chamado campo de refugiados
Onde se canta para espantar fome e sofrimento.
Fui orgulhoso comandante de uma nau portuguesa
Que contra ventos e marés
Rasgou novos oceanos e descobriu continentes
E o comedido astronauta
Que ao ver o planeta azul se comoveu.
Fui governante que assinou forais
E fui o soldado impotente
Atingido por certeira bala.
E fui guerreiro, salteador, pirata
Sempre em meu redor semeando o temor
Desolação e dor.
E verme rastejante
Das selvas virgens do Brasil.
Fui inventor do disco de vinil,
Toquei harpa, usei o pincel
Fui pianista e escultor a cinzel.
Fui filósofo, cristão, ateu, budista,
Fui ignorante e ilustre cientista
Fui Bartolomeu de Gusmão
E seu sonho de voar na frágil Passarola
Fui cartógrafo, biólogo e astrónomo
E entre retortas e tubos de ensaio
Inventei estranhas poções no período medieval.
Fui revolucionário que por convicção se imola
Num braseiro colossal
E fui também convicto inquisidor
Queimando livros e supostos delatores.
Fertilizando os terrenos circundantes,
Fui anémona que cresce entre os corais
Que povoam os abismos marinhos
E bando de cotovias
Jazendo inertes nos ninhos.
E jovem rebelde pintor de murais,
Que sou pedaço de nuvem estratiforme
Que paciente volteia nos céus
E se transforma em água revigorante
Alimentando rios e pastos enormes
E fui suave, abençoada, aragem
Em dia de calor abrasador.
Fui
Cruzeiro do Sul e Estrela Polar
Pacífico membro de uma manada de elefantes,
Feroz, audacioso, tigre da Tasmânia
E laivos de cinza sobre os céus da Islândia.
Meticuloso bicho da seda
Que se
sela em seu casulo.
E fui aresta e vértice cortante
Mas também fui espiral ondulante.
De toda esta simbiose, osmose,
Metamorfose,
Rompi num pranto sem fim
Pois se fui honesto, valente, solidário
Fui também a causa da ganância e injustiça
Agora sei que tenho dentro de mim
A semente da paz e a origem da guerra.
Ana Redondo, Junho 2013
Hoje,
ainda que de longe e turvado,
Vislumbrei
o Aleph de José Luís Borges.Fui um cume altaneiro
Com neves perpétuas
Ao céu apontando.
Na árida estepe siberiana.
E circulei em rodas e festas
Vestida de garrida cigana.
Fui um rebelde pardal
Em voo rasante
Sobre os campos de milho.
Fui honesto agricultor
Amante do seu velho asno,
Cultivando couve- portuguesa
Em minúsculo quintal.
Fui adulado e vivi só
Fui apaixonado,
Doente e olvidado.
Sofri, fui amado e odiado.
Fui presença constante e misantropo ausente.
Fui as
rugas cavadas e as mãos calejadas
De um
idoso pastorE percorri num camelo as dunas do deserto.
Fui o som revigorante
De límpida cascata
E o furioso vulcão
De lava transbordante,
Que avança, indómito,
E tudo destrói.
Fui intrépida fragata
Sulcando os mares sem fim
E frágil libélula
Pousando nos umbrais.
Hoje,
ainda que de longe e acantonado
Vislumbrei
o Aleph, o que pesa e o que sustém,O nascente e o ocaso,
A luz cintilante e a bruma velada.
Fui as mãos pacientes e treinadas
Que ao longo do anos
Entrelaçaram fios em histórico tear
E a latejante dor daquela mãe
Que chora o filho perdido
Que não mais regressará ao lar.
Fui a pinguim
progenitora
Que
descobre, amargurada,Que o gelo eterno
Afinal era efémero!
Agora é mais distante o caminho até ao oceano
E bem mais duro e incerto
Encontrar alimento. O regresso demora
Até ao desprotegido bebé pinguim .
Fui o súbito
sobressalto do pai operário
Que
acabou de receber carta de despedimentoE a criança que nasceu e sempre viveu
Naquele estranho habitário
Candidamente chamado campo de refugiados
Onde se canta para espantar fome e sofrimento.
Hoje,
ainda que de longe e nublado,
Vislumbrei
o Aleph, o infortúnio e a riqueza.Fui orgulhoso comandante de uma nau portuguesa
Que contra ventos e marés
Rasgou novos oceanos e descobriu continentes
E o comedido astronauta
Que ao ver o planeta azul se comoveu.
Fui governante que assinou forais
E fui o soldado impotente
Atingido por certeira bala.
E fui guerreiro, salteador, pirata
Sempre em meu redor semeando o temor
Desolação e dor.
Fui
brisa ciciante
Rodopiando
entre verdes troncosE verme rastejante
Das selvas virgens do Brasil.
Fui inventor do disco de vinil,
Toquei harpa, usei o pincel
Fui pianista e escultor a cinzel.
Hoje,
ainda que de longe e embaciado,
Vislumbrei
o Aleph, a raiva e o perdão.Fui filósofo, cristão, ateu, budista,
Fui ignorante e ilustre cientista
Fui Bartolomeu de Gusmão
E seu sonho de voar na frágil Passarola
Fui cartógrafo, biólogo e astrónomo
E entre retortas e tubos de ensaio
Inventei estranhas poções no período medieval.
Fui revolucionário que por convicção se imola
Num braseiro colossal
E fui também convicto inquisidor
Queimando livros e supostos delatores.
Fui as águas transparentes
Do
riacho que corre a avançaFertilizando os terrenos circundantes,
Fui anémona que cresce entre os corais
Que povoam os abismos marinhos
E bando de cotovias
Jazendo inertes nos ninhos.
Hoje
compreendi que derivo da evolução dos fractais,
Que fui
construtor de catedraisE jovem rebelde pintor de murais,
Que sou pedaço de nuvem estratiforme
Que paciente volteia nos céus
E se transforma em água revigorante
Alimentando rios e pastos enormes
E fui suave, abençoada, aragem
Em dia de calor abrasador.
Inventei
o compasso e o astrolábio
E li as
latitudes apontando as estrelasPacífico membro de uma manada de elefantes,
Feroz, audacioso, tigre da Tasmânia
E laivos de cinza sobre os céus da Islândia.
Fui
dólmen granítico
E avião
supersónico,Meticuloso bicho da seda
E fui aresta e vértice cortante
Mas também fui espiral ondulante.
E
depois desta rápida sucessão
Deste
painel em incessante renovaçãoDe toda esta simbiose, osmose,
Metamorfose,
Rompi num pranto sem fim
Pois se fui honesto, valente, solidário
Fui também a causa da ganância e injustiça
Agora sei que tenho dentro de mim
A semente da paz e a origem da guerra.
Ana Redondo, Junho 2013
quinta-feira, 27 de junho de 2013
Citações - Fernando Pessoa
"Há duas formas para viver a sua vida:
Uma é acreditar que não existe milagre.
A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre."
Uma é acreditar que não existe milagre.
A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre."
***
"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas ...
Que já têm a forma do nosso corpo ...
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos
mesmos lugares ...
É o tempo da travessia ...
E se não ousarmos fazê-la ...
Teremos ficado ... para sempre ...
À margem de nós mesmos..."
Que já têm a forma do nosso corpo ...
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos
mesmos lugares ...
É o tempo da travessia ...
E se não ousarmos fazê-la ...
Teremos ficado ... para sempre ...
À margem de nós mesmos..."
Universo paralelo (2013)
O circo
findou
A alegria parou
Teve ilusões, fortuna, véus de encanto,
Cenas gloriosas, magias assombrosas,
Momentos de altivez e espanto.
Desligaram as luzes da ribalta
Em grupos, a plateia esvazia-se,
O material da encenação já não faz falta
Desfaz-se.
A tenda onde actuaram
Palhaços e acrobatas
É já ruína sombria
Vestígios de panos e tubos de lata.
Que não regressam a um mundo igual.
Há aqui algo de fosco, de irreal
Insano.
Caíram por certo em universo virtual,
Oculto mundo paralelo e estranho
Semelhante, sim, mas diferente
Um outro mundo afinal.
O certo tornou-se errado
A escuridão, claridade.
Talvez ainda digam que o mal é mal
Mas o mal que eles próprios fazem
De súbito foi virado em bem.
As regras são círculos,
Encerrados em círculos,
Onde nascem círculos
Cruzando outros círculos
E elipses e hipérboles
Torneando hipérboles.
Que, na minha incauta ignorância,
Parece uma anomalia.
Era tudo mais simples
Na minha remota infância!
De quem tudo aceita e suporta
E já não se espanta
Pois conhece a humanidade
Melhor que ninguém!
Sabes, aqueles senhores anafados, de anel no dedo
Rosto arqueado
E cabelo bem penteado.
De resto, é mesmo muito fácil,
Só tens que manter o teu registo tácito
De os olhares bem de frente
E concordares sempre.
Vai dizendo que sim
A todas as suas irrisíveis promessas
Não estranhes, não abras o jogo,
Não te tornes um alvo."
“Sabes, eles são tão incultos,
Mas tão confiantes
Na impenetrável rede de defesa
Com que se protegeram
Cercados de sólido muro
Que nem sequer notam
Que se contradizem.
Enganam, desdizem
Sempre que, altivos e com ar sisudo,
Acusam os outros de serem assassinos,
Maldosos, cruéis, profanos,
E assim, impunes ordenam
Que apodreçam no degredo."
Ana Redondo, Junho 2013
A alegria parou
Teve ilusões, fortuna, véus de encanto,
Cenas gloriosas, magias assombrosas,
Momentos de altivez e espanto.
Desligaram as luzes da ribalta
Em grupos, a plateia esvazia-se,
O material da encenação já não faz falta
Desfaz-se.
A tenda onde actuaram
Palhaços e acrobatas
É já ruína sombria
Vestígios de panos e tubos de lata.
Os transeuntes, ainda desatentos,
Irão
lentamente entenderQue não regressam a um mundo igual.
Há aqui algo de fosco, de irreal
Insano.
Caíram por certo em universo virtual,
Oculto mundo paralelo e estranho
Semelhante, sim, mas diferente
Um outro mundo afinal.
Mudaram
os postulados,
Trocaram
as condições,O certo tornou-se errado
A escuridão, claridade.
Mas nem
sequer é tão simples
Como
transcrito em papelTalvez ainda digam que o mal é mal
Mas o mal que eles próprios fazem
De súbito foi virado em bem.
Meu
Deus, que infelicidade.
Afinal
isto é confuso!As regras são círculos,
Encerrados em círculos,
Onde nascem círculos
Cruzando outros círculos
E elipses e hipérboles
Torneando hipérboles.
Meu
Deus, ajuda-me
Nesta
nova geometriaQue, na minha incauta ignorância,
Parece uma anomalia.
Era tudo mais simples
Na minha remota infância!
E o
Senhor me responde,
Com seu
plácido sorriso manso,De quem tudo aceita e suporta
E já não se espanta
Pois conhece a humanidade
Melhor que ninguém!
“É
fácil, muito fácil
A
verdade está sempre onde estão os poderososSabes, aqueles senhores anafados, de anel no dedo
Rosto arqueado
E cabelo bem penteado.
De resto, é mesmo muito fácil,
Só tens que manter o teu registo tácito
De os olhares bem de frente
E concordares sempre.
Vai dizendo que sim
A todas as suas irrisíveis promessas
Não estranhes, não abras o jogo,
Não te tornes um alvo."
E
depois sussurra-me em segredo
Uma
estranha surpresa:“Sabes, eles são tão incultos,
Mas tão confiantes
Na impenetrável rede de defesa
Com que se protegeram
Cercados de sólido muro
Que nem sequer notam
Que se contradizem.
Enganam, desdizem
Sempre que, altivos e com ar sisudo,
Acusam os outros de serem assassinos,
Maldosos, cruéis, profanos,
E assim, impunes ordenam
Que apodreçam no degredo."
Ana Redondo, Junho 2013
Eu sou (2013)
Eu sou.
E quando simplesmente sou
O que eu sou reverbera e exulta.
Amanhã também sou
Mas aquilo que amanhã sou
Não é o que hoje sou.
Mas sei que sou.
Ocupo espaço, caminho,
E de pasmo me quedo
Envolta no processo de sentir,
Intuir, revolver,
Reconstruir, renascer, fluir.
Eu, a cada momento, sou.
Ana Redondo, Junho 2013
E quando simplesmente sou
O que eu sou reverbera e exulta.
Eu hoje
sou
E o que
sou se alegra e manifesta.Amanhã também sou
Mas aquilo que amanhã sou
Não é o que hoje sou.
Hoje,
escrevo aqui o que penso.
Amanhã,
não sei agora onde estou,Mas sei que sou.
Com
todas as células, ossos,
Figmentos,
veias, pele,Ocupo espaço, caminho,
E de pasmo me quedo
Envolta no processo de sentir,
Intuir, revolver,
Reconstruir, renascer, fluir.
Eu, a cada momento, sou.
Ana Redondo, Junho 2013
Não sei quantas almas tenho - Fernando Pessoa
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
Aspiração - Antero de Quental
Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos
É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.
Minh'alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...
Porém do pressentir
dá-me a certeza.
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira, Eu sempre bendirei esta tristeza!
quarta-feira, 26 de junho de 2013
A espantosa realidade das cousas - Alberto Caeiro (Heterónimo de Fernando Pessoa)
A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.
Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Basta existir para se ser completo.
Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. Naturalmente. Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.
Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente. Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo, Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" (Heterónimo de Fernando Pessoa)
Menina de Inhaca (2013)
Alegre e indómita,
Vieste e me abraçaste
Com tanto vigor
Penetraste-me a pele,
Sibilando segredos
De encontro ao meu rosto.
Querida menina de ternura tanta
Olhos de cristal e ébano,
Inquisidores, murmurantes
Corpo de criança,
Alma inigualável,
A vida num sopro,
Vitral inexorável!
Vem, menina de Inhaca
Corpo de criança,
Com as marcas doridas
Da imperfeição dos teus membros
Tua mão e pé disforme
Transmitem a pureza do teu sonho enorme.
Imperfeitos? Deus meu!
Teus olhos profundosCantam perfeição
E teu doce lar,
Nessa espantosa intacta região,
Invade-me inteira
Derramando muros e fronteiras.
Menina de sabor rebelde
Fragâncias de pimenta e mel,Olhos aveludados,
Coração transbordante.
Tua pele trigueira sabe a mar e sal
Amendoim, cacau, caju.
Ardentes areias marmóreas
Éden de florestas sagradas
De palmeiras, tamareiras
E o azul das águas encantadas
Onde as musas vagueiam ao luar.
Conhecer-te e amar-te
Tão subitamente,
Tão insana e enlevadamente
Trouxe-me a frescura do sol poente
Enquanto teu sorriso irradiante
Previa o sonoro voltejar dos falcões.
Frémito divino,
Coração impoluto,
Flamejante encanto
Derramado em vaso de cristal.
E assim me sugaste
No largo da tua aldeia,
De piso de areia
E avassalador calor
Junto ao tanque onde senhoras zelosas
De sabão em riste,
Retiravam das vestes os traços do suor.
E nos despojos de uma antiga carroça
Ainda sobre mim repousas o teu olhar vibrante,Criança mansa e imaculada,
Tua nobre e simples vila,
Dirigida por respeitados anciões
Guardiães da ancestral sabedoria,
Atordoou-me,
Enfeitiçou-me
E despertou todo o meu alento.
Esvaziaste-me os poros
Mudaste-me a forma
Para caberes inteira
No espaço do meu vulto.
E agora, menina de Inhaca,
Menina concreta e vitoriosaEstás sempre comigo,
Mesmo juntinho ao meu coração
Como terra seca e lavrada.
Sinto-te ao meu lado
Sobrevoando o Índico
E aterrando em Lisboa.
E na aridez dos dias sem sentido
És o contraponto aos discursos insípidos,A dádiva que Deus tinha para mim!
Neste universo de premissas falsas
Foi a tua força que me vitalizou
E a tua doçura o que me salvou.
Ana Redondo, Junho 2013
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