domingo, 30 de junho de 2013

Pensamentos - Nelson Mandela

Não poderás encontrar nenhuma paixão se te conformas com uma vida que é inferior àquela que és capaz de viver.

sábado, 29 de junho de 2013

Mendiga - Florbela Espanca

Na vida nada tenho e nada sou;
Eu ando a mendigar pelas estradas...
No silêncio das noites estreladas
Caminho, sem saber para onde vou!
 
Tinha o manto do sol... quem mo roubou?!
Quem pisou minhas rosas desfolhadas?!
Quem foi que sobre as ondas revoltadas
A minha taça de oiro espedaçou?!

Agora vou andando e mendigando,
Sem que um olhar dos mundos infinitos
Veja passar o verme, rastejando...

Ah, quem me dera ser como os chacais
Uivando os brados, rouquejando os gritos
Na solidão dos ermos matagais!...

Inércia (1982)

Estou farta de mentir
De enganar os outros
Com meu sorriso triste
De me enganar a mim mesma
Meu coração de pedra coberto
Farta e cansada de mentir
Queria poder gritar
"Não, mais farsa não
Agora vou viver, ser eu"

Mas demasiado cansada até p'ra reagir
Quem sabe não continuarei
Pela vida fora
Sempre e só a enganar
Os outros e a mim
A enganar com meu semi-sorriso
A perfidez do mundo
A enganar com a crueldade do meu eu rasgado
A sucessão de emoções que, dentro de mim,
Aos borbotões perpassa


Ana Redondo, 1982

Vácuo (1981)

A minha vida
Nem a mim mesma conto
E fico assim tão vazia
Que qualquer dia encontro-me na rua
E nem me reconheço.

Depois, quando me cansar da farsa
De mentir a mim mesma vestida de ninguém
Arranco violenta a máscara
...E então me fitarei pela primeira vez

 Ana Redondo, 1981

E enquanto momento a momento morro... (1982)

                                              "E com isto que têm as estrelas?
                                               Continuam brilhando altas e belas"
                                               José Régio

Há lá morte mais dolorosa
Que esta que momento a momento me consome
Pedaço a pedaço me leva
E a pouco e pouco me destrói
Me seca os olhos
Me esvazia os sentidos
E me vai tornando pedra dura
... E estarei morta quando tiver esquecido
A súplica (quiçá fingida) que um dia li nos teus olhos


Ana Redondo, 1982
 

Advertência (1982)

E se algum dia eu publicar
Este lamento em forma de verso
Que saibam desde já os seus leitores ao lê-lo
Que não vale o papel em que está escrito...
E no entanto contém (incipiente e confuso)
Todo o mistério e miséria
Deste mundo que pisamos
Enquanto, humanos, vivemos

E se algum dia o publicar
Que fiquem desde já sabendo
Tudo o que aqui fica dito
O disseram já pelos tempos fora
Centenas e centenas de criaturas iguais
Tudo o que aqui está escrito
Muitos antes de mim
O escreveram já, bem mais e melhor
Tudo o que aqui está escrito
O vive, a cada hora, cada ser que passa


 Ana Redondo, 1982

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Esforço: Tentativa e erro (2013)

Redigi as minhas crenças
E lancei-as numa seta
Com esperança que atingissem
Certeiras a meta.

Cantei os meus valores
E gravei-os em tambores
Na ilusão demente
Que troassem em frente.

Pousei os  meus princípios
Em cima de uma nuvem
Para se converterem em chuva
E alimentarem os rios.

Lancei as minhas raízes
No solo mais fértil
Para que as acácias, em Abril
Fossem amena  sombra de petizes.

Pintei meus sonhos em telas
Cheias de luz e de cor
Crente que às sombrias favelas
Chegaria uma réstea de amor.

Gritei verdades aos ventos
Que zumbiam em turbilhões,
Julgando que os meus lamentos
Comoveriam nações.

Subi com as minhas certezas
Até ao centro do vulcão
Para que as lavas intensas
Atingissem o teu coração.

Mas a chuva amainou,
O vento abrandou,
O vulcão ficou inactivo
E a minha fúria se cansou.


Ana Redondo, Junho 2013

Metamorfose (2013)

                                                  Homenagem a Jorge Luís Borges e ao seu conto “Aleph”

Hoje, ainda que de longe e turvado,
Vislumbrei o Aleph de José Luís Borges.
Fui um cume altaneiro
Com neves perpétuas
Ao céu apontando.
Fui condutor de trenós
Na árida estepe siberiana.
E circulei em rodas e festas
Vestida de garrida cigana.
Fui um rebelde pardal
Em voo rasante
Sobre os campos de milho.
Fui honesto agricultor
Amante do seu velho asno,
Cultivando couve- portuguesa
Em minúsculo quintal.
Fui adulado e vivi só
Fui apaixonado,
Doente e olvidado.

 Hoje, ainda que de longe e velado,
Vislumbrei o Aleph, o longe e o perto.
Sofri, fui amado e odiado.
Fui presença constante e misantropo ausente.
Fui as rugas cavadas e as mãos calejadas
De um idoso pastor
E percorri num camelo as dunas do deserto.
Fui o som revigorante
De límpida cascata
E o furioso vulcão
De lava transbordante,
Que avança, indómito,
E tudo destrói.
Fui intrépida fragata
Sulcando os mares sem fim
E frágil libélula
Pousando nos umbrais.

Hoje, ainda que de longe e acantonado
Vislumbrei o Aleph, o que pesa e o que sustém,
O nascente e o ocaso,
A luz cintilante e a bruma velada.
Fui as mãos pacientes e treinadas
Que ao longo do anos
Entrelaçaram fios em histórico tear
E a latejante dor daquela mãe
Que chora o filho perdido
Que não mais regressará ao lar.
 
Fui a pinguim progenitora
Que descobre, amargurada,
Que o gelo eterno
Afinal era efémero!
Agora é mais distante o caminho até ao oceano
E bem mais duro e incerto
Encontrar alimento. O regresso demora
Até ao desprotegido bebé pinguim .

Fui o súbito sobressalto do pai operário
Que acabou de receber carta de despedimento
E a criança que nasceu e sempre viveu
Naquele estranho habitário
Candidamente chamado campo de refugiados
Onde se canta para espantar fome e sofrimento.

Hoje, ainda que de longe e nublado,
Vislumbrei o Aleph, o infortúnio e a riqueza.
Fui orgulhoso comandante de uma nau portuguesa
Que contra ventos e marés
Rasgou novos oceanos e descobriu continentes
E o comedido astronauta
Que ao ver o planeta azul se comoveu.
Fui governante que assinou forais
E fui o soldado impotente
Atingido por certeira bala.
E fui guerreiro, salteador, pirata
Sempre em meu redor semeando o temor
Desolação e dor.

Fui brisa ciciante
Rodopiando entre verdes troncos
E verme rastejante
Das selvas virgens do Brasil.
Fui inventor do disco de vinil,
Toquei harpa, usei o pincel
Fui pianista e escultor a cinzel.

Hoje, ainda que de longe e embaciado,
Vislumbrei o Aleph, a raiva e o perdão.
Fui filósofo, cristão, ateu, budista,
Fui ignorante e ilustre cientista
Fui Bartolomeu de Gusmão
E seu sonho de voar na frágil Passarola
Fui cartógrafo, biólogo e astrónomo
E entre retortas e tubos de ensaio
Inventei estranhas poções no período medieval.
Fui revolucionário que por convicção se imola
Num braseiro colossal
E fui também convicto inquisidor
Queimando livros e supostos delatores.

Fui as águas transparentes
Do riacho que corre a avança
Fertilizando os terrenos circundantes,
Fui anémona que cresce entre os corais
Que povoam os abismos marinhos
E bando de cotovias
Jazendo inertes nos ninhos.

Hoje compreendi que derivo da evolução dos fractais,
Que fui construtor de catedrais
E jovem rebelde pintor de murais,
Que sou pedaço de nuvem estratiforme
Que paciente volteia nos céus
E se transforma em água revigorante
Alimentando rios e pastos enormes
E fui suave, abençoada, aragem
Em dia de calor abrasador.

Inventei o compasso e o astrolábio
E li as latitudes apontando as estrelas
Fui Cruzeiro do Sul e Estrela Polar
Pacífico membro de uma manada de elefantes,
Feroz, audacioso, tigre da Tasmânia
E laivos de cinza sobre os céus da Islândia.

Fui dólmen granítico
E avião supersónico,
Meticuloso bicho da seda
Que se sela em seu casulo.
E fui aresta e vértice cortante
Mas também fui espiral ondulante.

E depois desta rápida sucessão
Deste painel em incessante renovação
De toda esta simbiose, osmose,
Metamorfose,
Rompi num pranto sem fim
Pois se fui honesto, valente, solidário
Fui também a causa da ganância e injustiça
Agora sei que tenho dentro de mim
A semente da paz e a origem da guerra.



Ana Redondo, Junho 2013

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Citações - Fernando Pessoa

"Há duas formas para viver a sua vida:
Uma é acreditar que não existe milagre.
A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre."


***
"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas ...
Que já têm a forma do nosso corpo ...
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos
mesmos lugares ...

É o tempo da travessia ...
E se não ousarmos fazê-la ...
Teremos ficado ... para sempre ...
À margem de nós mesmos..."

Universo paralelo (2013)

O circo findou
A alegria parou
Teve ilusões, fortuna, véus de encanto,
Cenas gloriosas, magias assombrosas,
Momentos de altivez e espanto.

Desligaram as luzes da ribalta
Em grupos, a plateia esvazia-se,
O material da encenação já não faz falta
Desfaz-se.
A tenda onde actuaram
Palhaços e acrobatas
É já ruína sombria
Vestígios de panos e tubos de lata.

Os  transeuntes, ainda desatentos,
Irão lentamente entender
Que não regressam a um mundo igual.
Há aqui algo de fosco, de irreal
Insano.
Caíram por certo em universo virtual,
Oculto mundo paralelo e estranho
Semelhante, sim, mas diferente
Um outro mundo afinal.

Mudaram os postulados,
Trocaram as condições,
O certo tornou-se errado
A escuridão, claridade.

Mas nem sequer é tão simples
Como transcrito em papel
Talvez ainda digam que o mal é mal
Mas o mal que eles próprios fazem
De súbito foi virado em bem.
 
Meu Deus, que infelicidade.
Afinal isto é confuso!
As regras são círculos,
Encerrados em círculos,
Onde nascem círculos
Cruzando outros círculos
E elipses e hipérboles
Torneando hipérboles.

Meu Deus, ajuda-me
Nesta nova geometria
Que, na minha incauta ignorância,
Parece uma anomalia.
Era tudo mais simples
Na minha remota infância!

E o Senhor me responde,
Com seu plácido sorriso manso,
De quem tudo aceita e suporta
E já não se espanta
Pois conhece a humanidade
Melhor que ninguém!

“É fácil, muito fácil
A verdade está sempre onde estão os poderosos
Sabes, aqueles senhores anafados, de anel no dedo
Rosto arqueado
E cabelo bem penteado.
De resto, é mesmo muito fácil,
Só tens que manter o teu registo tácito
De os olhares bem de frente
E concordares sempre.
Vai dizendo que sim
A todas as suas irrisíveis promessas
Não estranhes, não abras o jogo,
Não te tornes um alvo."

E depois sussurra-me em segredo
Uma estranha surpresa:
“Sabes, eles são tão incultos,
Mas tão confiantes
Na impenetrável rede de defesa
Com que se protegeram
Cercados de sólido muro
Que nem sequer notam
Que se contradizem.
Enganam, desdizem
Sempre que, altivos e com ar sisudo,
Acusam os outros de serem assassinos,
Maldosos, cruéis, profanos,
E assim, impunes ordenam
Que apodreçam no degredo."

Ana Redondo, Junho 2013

Eu sou (2013)

Eu sou.
E quando simplesmente sou
O que eu sou reverbera e exulta.

Eu hoje sou
E o que sou se alegra e manifesta.
Amanhã também sou
Mas aquilo que amanhã sou
Não é o que hoje sou.

Hoje, escrevo aqui o que penso.
Amanhã, não sei agora onde estou,
Mas sei que sou.

Com todas as células, ossos,
Figmentos, veias, pele,
Ocupo espaço, caminho,
E de pasmo me quedo
Envolta no processo de sentir,
Intuir, revolver,
Reconstruir, renascer, fluir.

Eu, a cada momento, sou.

Ana Redondo, Junho 2013

Não sei quantas almas tenho - Fernando Pessoa

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu
.

Aspiração - Antero de Quental


 Meus dias vão correndo vagarosos
 Sem prazer e sem dor, e até parece
 Que o foco interior já desfalece
 E vacila com raios duvidosos

 É bela a vida e os anos são formosos,
 E nunca ao peito amante o amor falece...
 Mas, se a beleza aqui nos aparece,
 Logo outra lembra de mais puros gozos.

 Minh'alma, ó Deus! a outros céus aspira:
 Se um momento a prendeu mortal beleza,
 É pela eterna pátria que suspira...

 Porém do pressentir dá-me a certeza.
 Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
 Eu sempre bendirei esta tristeza!

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A espantosa realidade das cousas - Alberto Caeiro (Heterónimo de Fernando Pessoa)

 A espantosa realidade das cousas
 É a minha descoberta de todos os dias.
 Cada cousa é o que é,
 E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
 E quanto isso me basta.


 Basta existir para se ser completo.


 Tenho escrito bastantes poemas.
 Hei de escrever muitos mais. Naturalmente.
 Cada poema meu diz isto,
 E todos os meus poemas são diferentes,
 Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.


 Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
 Não me ponho a pensar se ela sente.
 Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
 Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
 Gosto dela porque ela não sente nada.
 Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.


 Outras vezes oiço passar o vento,
 E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
 Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
 Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
 Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
 Porque o penso sem pensamentos
 Porque o digo como as minhas palavras o dizem.


 Uma vez chamaram-me poeta materialista,
 E eu admirei-me, porque não julgava
 Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
 Eu nem sequer sou poeta: vejo.
 Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
 O valor está ali, nos meus versos.
 Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.



Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" (Heterónimo de Fernando Pessoa)

Menina de Inhaca (2013)

Surgiste do nada
Alegre e indómita,
Vieste e me abraçaste
Com tanto vigor
Penetraste-me a pele,
Sibilando segredos
De encontro ao meu rosto.
Querida menina de ternura tanta
Olhos de cristal e ébano,
Inquisidores, murmurantes
Corpo de criança,
Alma inigualável,
A vida num sopro,
Vitral inexorável!

Vem, menina de Inhaca
Corpo de criança,
Com as marcas doridas
Da imperfeição dos teus membros
Tua mão e pé disforme
Transmitem a pureza do teu sonho enorme.

Imperfeitos? Deus meu!
Teus olhos profundos
Cantam perfeição
E teu doce lar,
Nessa espantosa intacta região,
Invade-me inteira
Derramando muros e fronteiras.

Menina de sabor rebelde
Fragâncias de pimenta e mel,
Olhos aveludados,
Coração transbordante.
Tua pele trigueira sabe a mar e sal
Um travo de coral
Amendoim, cacau, caju.
Ardentes areias marmóreas
Éden de florestas sagradas
De palmeiras, tamareiras
E o azul das águas encantadas
Onde as musas vagueiam ao luar.

Conhecer-te e  amar-te
Tão subitamente,
Tão insana e enlevadamente
Trouxe-me a frescura do sol poente
Enquanto teu sorriso irradiante
Previa o sonoro voltejar dos falcões.

Frémito divino,
Coração impoluto,
Flamejante  encanto
Derramado em vaso de cristal.

E assim me sugaste
No largo da tua aldeia,
De piso de areia
E avassalador calor
Junto ao tanque onde senhoras zelosas
De sabão em riste,
Retiravam das vestes os traços do suor.

E nos despojos de uma antiga carroça
Ainda sobre mim repousas o teu olhar vibrante,
Criança mansa e imaculada,
Tua nobre e simples vila,
Dirigida por respeitados anciões
Guardiães da ancestral sabedoria,
Atordoou-me,
Enfeitiçou-me
E despertou todo o meu alento.
Esvaziaste-me os poros
Mudaste-me a forma
Para caberes inteira
No espaço do meu vulto.

E agora, menina de Inhaca,
Menina concreta e vitoriosa
Estás sempre comigo,
Mesmo juntinho ao meu coração
Como terra seca e lavrada.
Sinto-te ao meu lado
Sobrevoando o Índico
E aterrando em Lisboa.

E na aridez dos dias sem sentido
És o contraponto aos discursos insípidos,
A dádiva que Deus tinha para mim!
Neste universo de premissas falsas
Foi a tua força que me vitalizou
E a tua doçura o que me salvou.

Ana Redondo, Junho 2013