domingo, 23 de junho de 2013

Obra de restauro (2013)

Pobre ente acidentado,
Desfeito, partido,
Vergado
Destruído
Alquebrado,
Moído,
Tragado,
Amassado.

Irreconhecíveis fragmentos jazem sem nexo
Ao acaso atirados
Por exógenos portentos
Como folhas lançadas ao vento
Rugindo frágeis lamentos

Por favor,
Mestre Restaurador
Em tuas mãos pacientes,
Rigorosas,
Conscientes,
Coloco, os despojos, aos pedaços
Do meu corpo, minha alma, meu Ser, meu saber
Será que é possível vê-lo recomposto?
Será que ainda se pode refazer?

O Mestre inicia a sua cerimónia
Sereno, de avental
Com experiências lentas,
Morosas.
Que venha a ciência!
Não é cousa pouca
Um humano quebrado
Ser reconstruído!

Expôe lesto os fragmentos
Que deixa patentes
Sobre mui alvo pano
Inicia as medições,
Encaixes,
Dissecações
E planificações.

Transcreve os valores
Num tridimensional modelo
No seu laptop de última geração
Geometria, trigonometria,
E uma pitada de alquimia,
Dúvidas latentes...
Pigmentos, texturas,
Numa sábia mistura.
E o computador calcula com electónica precisão...
Surgem, em longa profusão,
Variadas sequências de números, resultados
E agora eu já creio
Que ele saberá por certo acertar
Não, seguramente, nada irá falhar.
 
E os pedaços dispersos
E arruinados
Começam a se encaixar,
O meu ser mental e o emocional
A soltar-se, a retornar
Ainda confusos, a balbuciar...

Meticuloso,
Ponderado,
Cauteloso,
Articulado,
O Mestre Restaurador
Mostra o seu engenho
Espalha o seu saber
Senhor do tempo
Seguro mas lento
Age sem tormento
E momento a momento
Junta um novo elemento.

Como delicada cozinheira
Adiciona o sal,
O arroz, o feijão
Tomilho e açafrão
E é com doce gosto
Que, de um prato frugal,
Cria um jantar sensacional

O Mestre Restaurador
Grande lição de sapiência!
Reune as peças com primordial amor
Ternamente, aos poucos, com prudência

Tenta um pedaço, tenta outro
Depois emenda
Cola aqui, pinta acolá
Um pouco de lixa
Depois o pincel
E assim prossegue

Nessa intangível luta sem quartel
De reestruturar,
Desencarcerar,
Reunificar
O meu Ser perdido e empedernido.

Por fim, eu renasço!
Já me sinto una
Regressam os sonhos,
A esperança,
E os enganos.
Mas agora estou vivo
Já não estou pisado
Machucado
Afastado
Congelado.

O coração palpita
O sangue nas veias corre
Inverte-se o cansaço,
A ausência, o fracasso.
A alegria irradia
Invade-me,
Transborda
Mas, ...poque há sempre um mas,
Também as penosas mágoas,
A angústia, a dor
Agora incendeia
E se espelha,
Em cada novo dia,
Nas rugas do meu rosto.

E no fogo me acendo,
Me levanto e voo.
Regressa o fervor
A força, a coragem
Já sou só voragem
Como espuma que empurra
Vivendo o momento
Sorrindo, chorando,
Sofrendo, observando,
Amando, vivendo.

Agora sei que serei sempre aprendiz
Mas não mais me oprimo,
Reprimo, afogo e me calo.
Não mais me acomodo
Ao que aguém quis por mim.

Não mais me separo,
Me aparto,
Me doo e magoo
Só porque convém
A uma sociedade
Que desconhece o bem.

Ana Redondo, Junho 2013

Sem comentários:

Enviar um comentário