sexta-feira, 28 de junho de 2013

Metamorfose (2013)

                                                  Homenagem a Jorge Luís Borges e ao seu conto “Aleph”

Hoje, ainda que de longe e turvado,
Vislumbrei o Aleph de José Luís Borges.
Fui um cume altaneiro
Com neves perpétuas
Ao céu apontando.
Fui condutor de trenós
Na árida estepe siberiana.
E circulei em rodas e festas
Vestida de garrida cigana.
Fui um rebelde pardal
Em voo rasante
Sobre os campos de milho.
Fui honesto agricultor
Amante do seu velho asno,
Cultivando couve- portuguesa
Em minúsculo quintal.
Fui adulado e vivi só
Fui apaixonado,
Doente e olvidado.

 Hoje, ainda que de longe e velado,
Vislumbrei o Aleph, o longe e o perto.
Sofri, fui amado e odiado.
Fui presença constante e misantropo ausente.
Fui as rugas cavadas e as mãos calejadas
De um idoso pastor
E percorri num camelo as dunas do deserto.
Fui o som revigorante
De límpida cascata
E o furioso vulcão
De lava transbordante,
Que avança, indómito,
E tudo destrói.
Fui intrépida fragata
Sulcando os mares sem fim
E frágil libélula
Pousando nos umbrais.

Hoje, ainda que de longe e acantonado
Vislumbrei o Aleph, o que pesa e o que sustém,
O nascente e o ocaso,
A luz cintilante e a bruma velada.
Fui as mãos pacientes e treinadas
Que ao longo do anos
Entrelaçaram fios em histórico tear
E a latejante dor daquela mãe
Que chora o filho perdido
Que não mais regressará ao lar.
 
Fui a pinguim progenitora
Que descobre, amargurada,
Que o gelo eterno
Afinal era efémero!
Agora é mais distante o caminho até ao oceano
E bem mais duro e incerto
Encontrar alimento. O regresso demora
Até ao desprotegido bebé pinguim .

Fui o súbito sobressalto do pai operário
Que acabou de receber carta de despedimento
E a criança que nasceu e sempre viveu
Naquele estranho habitário
Candidamente chamado campo de refugiados
Onde se canta para espantar fome e sofrimento.

Hoje, ainda que de longe e nublado,
Vislumbrei o Aleph, o infortúnio e a riqueza.
Fui orgulhoso comandante de uma nau portuguesa
Que contra ventos e marés
Rasgou novos oceanos e descobriu continentes
E o comedido astronauta
Que ao ver o planeta azul se comoveu.
Fui governante que assinou forais
E fui o soldado impotente
Atingido por certeira bala.
E fui guerreiro, salteador, pirata
Sempre em meu redor semeando o temor
Desolação e dor.

Fui brisa ciciante
Rodopiando entre verdes troncos
E verme rastejante
Das selvas virgens do Brasil.
Fui inventor do disco de vinil,
Toquei harpa, usei o pincel
Fui pianista e escultor a cinzel.

Hoje, ainda que de longe e embaciado,
Vislumbrei o Aleph, a raiva e o perdão.
Fui filósofo, cristão, ateu, budista,
Fui ignorante e ilustre cientista
Fui Bartolomeu de Gusmão
E seu sonho de voar na frágil Passarola
Fui cartógrafo, biólogo e astrónomo
E entre retortas e tubos de ensaio
Inventei estranhas poções no período medieval.
Fui revolucionário que por convicção se imola
Num braseiro colossal
E fui também convicto inquisidor
Queimando livros e supostos delatores.

Fui as águas transparentes
Do riacho que corre a avança
Fertilizando os terrenos circundantes,
Fui anémona que cresce entre os corais
Que povoam os abismos marinhos
E bando de cotovias
Jazendo inertes nos ninhos.

Hoje compreendi que derivo da evolução dos fractais,
Que fui construtor de catedrais
E jovem rebelde pintor de murais,
Que sou pedaço de nuvem estratiforme
Que paciente volteia nos céus
E se transforma em água revigorante
Alimentando rios e pastos enormes
E fui suave, abençoada, aragem
Em dia de calor abrasador.

Inventei o compasso e o astrolábio
E li as latitudes apontando as estrelas
Fui Cruzeiro do Sul e Estrela Polar
Pacífico membro de uma manada de elefantes,
Feroz, audacioso, tigre da Tasmânia
E laivos de cinza sobre os céus da Islândia.

Fui dólmen granítico
E avião supersónico,
Meticuloso bicho da seda
Que se sela em seu casulo.
E fui aresta e vértice cortante
Mas também fui espiral ondulante.

E depois desta rápida sucessão
Deste painel em incessante renovação
De toda esta simbiose, osmose,
Metamorfose,
Rompi num pranto sem fim
Pois se fui honesto, valente, solidário
Fui também a causa da ganância e injustiça
Agora sei que tenho dentro de mim
A semente da paz e a origem da guerra.



Ana Redondo, Junho 2013

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