Hoje,
ainda que de longe e turvado,
Vislumbrei
o Aleph de José Luís Borges.Fui um cume altaneiro
Com neves perpétuas
Ao céu apontando.
Na árida estepe siberiana.
E circulei em rodas e festas
Vestida de garrida cigana.
Fui um rebelde pardal
Em voo rasante
Sobre os campos de milho.
Fui honesto agricultor
Amante do seu velho asno,
Cultivando couve- portuguesa
Em minúsculo quintal.
Fui adulado e vivi só
Fui apaixonado,
Doente e olvidado.
Sofri, fui amado e odiado.
Fui presença constante e misantropo ausente.
Fui as
rugas cavadas e as mãos calejadas
De um
idoso pastorE percorri num camelo as dunas do deserto.
Fui o som revigorante
De límpida cascata
E o furioso vulcão
De lava transbordante,
Que avança, indómito,
E tudo destrói.
Fui intrépida fragata
Sulcando os mares sem fim
E frágil libélula
Pousando nos umbrais.
Hoje,
ainda que de longe e acantonado
Vislumbrei
o Aleph, o que pesa e o que sustém,O nascente e o ocaso,
A luz cintilante e a bruma velada.
Fui as mãos pacientes e treinadas
Que ao longo do anos
Entrelaçaram fios em histórico tear
E a latejante dor daquela mãe
Que chora o filho perdido
Que não mais regressará ao lar.
Fui a pinguim
progenitora
Que
descobre, amargurada,Que o gelo eterno
Afinal era efémero!
Agora é mais distante o caminho até ao oceano
E bem mais duro e incerto
Encontrar alimento. O regresso demora
Até ao desprotegido bebé pinguim .
Fui o súbito
sobressalto do pai operário
Que
acabou de receber carta de despedimentoE a criança que nasceu e sempre viveu
Naquele estranho habitário
Candidamente chamado campo de refugiados
Onde se canta para espantar fome e sofrimento.
Hoje,
ainda que de longe e nublado,
Vislumbrei
o Aleph, o infortúnio e a riqueza.Fui orgulhoso comandante de uma nau portuguesa
Que contra ventos e marés
Rasgou novos oceanos e descobriu continentes
E o comedido astronauta
Que ao ver o planeta azul se comoveu.
Fui governante que assinou forais
E fui o soldado impotente
Atingido por certeira bala.
E fui guerreiro, salteador, pirata
Sempre em meu redor semeando o temor
Desolação e dor.
Fui
brisa ciciante
Rodopiando
entre verdes troncosE verme rastejante
Das selvas virgens do Brasil.
Fui inventor do disco de vinil,
Toquei harpa, usei o pincel
Fui pianista e escultor a cinzel.
Hoje,
ainda que de longe e embaciado,
Vislumbrei
o Aleph, a raiva e o perdão.Fui filósofo, cristão, ateu, budista,
Fui ignorante e ilustre cientista
Fui Bartolomeu de Gusmão
E seu sonho de voar na frágil Passarola
Fui cartógrafo, biólogo e astrónomo
E entre retortas e tubos de ensaio
Inventei estranhas poções no período medieval.
Fui revolucionário que por convicção se imola
Num braseiro colossal
E fui também convicto inquisidor
Queimando livros e supostos delatores.
Fui as águas transparentes
Do
riacho que corre a avançaFertilizando os terrenos circundantes,
Fui anémona que cresce entre os corais
Que povoam os abismos marinhos
E bando de cotovias
Jazendo inertes nos ninhos.
Hoje
compreendi que derivo da evolução dos fractais,
Que fui
construtor de catedraisE jovem rebelde pintor de murais,
Que sou pedaço de nuvem estratiforme
Que paciente volteia nos céus
E se transforma em água revigorante
Alimentando rios e pastos enormes
E fui suave, abençoada, aragem
Em dia de calor abrasador.
Inventei
o compasso e o astrolábio
E li as
latitudes apontando as estrelasPacífico membro de uma manada de elefantes,
Feroz, audacioso, tigre da Tasmânia
E laivos de cinza sobre os céus da Islândia.
Fui
dólmen granítico
E avião
supersónico,Meticuloso bicho da seda
E fui aresta e vértice cortante
Mas também fui espiral ondulante.
E
depois desta rápida sucessão
Deste
painel em incessante renovaçãoDe toda esta simbiose, osmose,
Metamorfose,
Rompi num pranto sem fim
Pois se fui honesto, valente, solidário
Fui também a causa da ganância e injustiça
Agora sei que tenho dentro de mim
A semente da paz e a origem da guerra.
Ana Redondo, Junho 2013
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